quinta-feira, agosto 21

entrega

quase não pude
chegar
à porta

para receber um pacote tão grande
- tamanho medo -
eu que sempre adorei a fuga
de perder-se entre as coisas
o carteiro já estava virando
deveria continuar seu trabalho
ambíguo
de entregar mistérios
mas o meu esforço para abrir
a porta
gerou um ruído absurdo:
pude ver o seu regresso
pude tocar
a caixa
e o medo.

domingo, junho 15

sempre

tristes
tentamos nos olhar
tentamos

tua cabeça / um novelo
transbordando
em nó

tua cabeça um nó um novelo

cabeça/nó/novelo

cabeça

uma porta sempre aberta
fechando a passagem






terça-feira, maio 13

ovo

teu nome é
o não dito

a palavra na boca
abre uma fenda
inaudível

pensei hoje vou falar 
pensei
corpo em verbo
falar 
corpo / a dobra do hálito / a boca

dizer / no ar adensa
o não dito

pesa / o peso do mundo
sossega em minha glote
(amor, amor)

agora

olha

abre uma fenda — diga / digo
falar por mim — estanca / morre









domingo, maio 4

Dois

I - ÉBRIA

aqui dormimos
    aqui acordamos


             esse amor dançando
            em minha boca


       na cidade infinita
           de nossos corpos
 
          
           dormimos
     acordamos

 
  sem pressa
     seguimos - até

      que seja outra a nossa
               descoberta



II - SONHO


seja então esse braço
(cansado
breve
mutilado)
outro braço

uma rua para tanto chão
e asas as omoplatas

dilata
dilata

debulha o nó de suas palavras

cansadas
escancaradas

lembram aquela boneca russa
toda aberta
tantas bonecas

sem mãos para se fechar





 

quinta-feira, maio 1

ritual in transfigured time

dançávamos
no saguão
de nossas cabeças

dançávamos
dançava ao lado
o torvelim
de nossas cabeças

nós
entre as pernas
do asfalto

insistindo
em nos
possuir

entre os membros desse chão sem cor

dançávamos

insistindo em nos possuir.

sexta-feira, abril 4

nosso léxico, em todo caso, não está longe de se esgotar

esgotará

como quando armas um temporal na cara
e um vento te desmonta o cenho

esgotará

como um apelo da garganta
emudecendo esgotará esgotará

como um lastro de ideia que a minha mão te arranca

esgotará 

como esgotaremos
— o tempo tecido em fios d'água

sábado, março 15

a redoma

quando fechas a porta
resta o que ruge
em mim.


o que desconheço
da tua porta em mim
membros em mim
que sonho


um pensamento diurno
transvasando


à noite, cerrada
a porta é a tua cabeça
sensata
dizendo não

quinta-feira, março 13

ta tête

não!
agora não posso tocar a sua cabeça
ela pode derreter-se
espatifará em pedaços
na minha mão
a sua cabeça
diluída em azul
 marinho, misturando
inconsciência onde amarro
não!
não posso guindar-me em tua cabeça
que é um mar de cinzas
quando me olhas de cima
seguras teu cajado
e diz
(eloquente do céu da boca)
- cá estou, esvazie em tuas mãos
a minha cabeça.

quarta-feira, janeiro 15

em BH

ouvir o blábláblá alheio, lourenço, como a vida é
 dura e o mundo é chato.

nunca haverá os lugares dos livros que li

talvez começasse com L ou CL o inferninho de 62 - modelo para armar
cortazinha
moinho  onde residem todos
os pequenos desencontros e
as pessoas certas
ali
que não é o bar
entre a gordura dos meus dedos
e alguma baba

escrevo um bilhete como quem pode
o caixa se apaixonar por mim
deixo na conta &
sou em quem pago

mas lá entre meus dedos não.
são páginas, lourenço, páginas.










domingo, janeiro 12

espelho

para eduardo
 "porque fuiste siempre un espejo terrible, una espantosa máquina de repeticiones, y lo que llamamos amarnos fue quizá que yo estaba de pie delante de vos, con una flor amarilla en la mano, y vos sostenías dos velas verdes y el tiempo soplaba contra nuestras caras una lenta lluvia de renuncias y despedidas y tickets de metro."



virado e
imune está o seu corpo
sem planos
ou meta que te despenque as ideias:
coragem apenas sendo
um voo raso um pão doce ao fim
do dia.

o seu corpo está
fechado
desde a tua mãe te dando um chá de estrela
do mar, peixe, bicho,
trancado em mim
tão aberta, aguando
o futuro esperado
a criança indo de vez
daqui
para a ciência as palavras o adulto
que me compus.