segunda-feira, novembro 26

A torre


                                     

SIM há o tempo dos diálogos
até o estouro
dum silêncio implacável

-

Raquel silenciava
o seu corpo de peixe
hipotônico em água salgada

e salgando
seca
sedenta sob a luz
baixa – por que tão cansada?
           – por que você?
ancorada junto à janela
ela parecia querer despencar
tudo cheirando a mar agitado
Raquel da janela vê-se o quarto
tão escuro
cheirando  a mar agitado

seca tão seca de não vejo a sua carne
dela nasce o estouro implacável
um silêncio bem enfiado
entre o meu corpo à beira da calçada
e o seu corpo beirando a janela


sempre por despencar
janela Raquel os seus estrados
automóveis por falésias
as tantas


cordas que despontam de seu instrumento
sempre por despencar

os instrumentos o ferro da clave
a torre das borboletas arremessadas
o crime o caule da flor
a flor, Raquel, eu
e tu
por uma fissura silente
entre o intervalo destes corpos.

segunda-feira, novembro 5

projetando e a cena

-

ouça a voz dos réus
que abriga a tua razão
vem dos ruídos em salas de cinema
lotadas, nasce em salas de cinema


ouça a voz na tela
ouça a voz na tela
há um cão na poltrona vizinha.
há latidos por toda a projeção
da noite, a sala muito escura
late.


Uma calçada de concreto.
Quem     te     fez    pedra?

há de morrer em tua razão
quantos réus e cidades
às suas pedras e guinchos

Guindar as poltronas.
as portas fechadas
o poste de luz amarela
(a última lâmina da avenida)



guindar estas calçadas

-

se os seus cabelos fecham a imersão
que é o seu rosto, e mais nada
quando a poltrona encontra o chão
e as suas mãos não erguem mais
o copo
se os seus cabelos fundem à mascara
que cicatriza o seu rosto:
assistir a cena da noite
numa sala escura latindo
latindo, ébria na pedra da calçada
que a sua mão não ergue mais
o copo
assistir a cena do dia
quebrar espelhos
- ela é a mulher! –
guindar a cena :
                     finalmente
                             despencá-la.
           

segunda-feira, outubro 22

As bonecas de Monsieur Ochs


que um corpo lhe atravesse
     pulsa a pegada dos seus ancestrais

que um corpo lhe atravesse
     pulsa foice a cada degrau

- quantos pés os seus amores
- quantos réus à sua memória
- quanta foice

difusa a sua pele
amarela – é o seu rosto, Monsieur
estampa  a margem desta cena

Monsieur não vê?         
                    não vê?

arquiteta
as suas bonecas
inventam meu corpo
inteiro

assusta a noite destas suas bonecas
pueris vis atravessadas

Monsieur Ochs, Monsieur
a louça está quebrada
esta boneca rota
foi a escada foi
o transe da estação?
o pé o pó os trilhos

um desastre estes seus brinquedos
ao pé da escada ante o seu rosto
as suas costas antes do seu rosto
ante os degraus
revelam por dentro a porcelana
é lâmina só lâmina
esta boneca rota atravessada,
                                               Monsieur,

não vê?

                                            não vê?

 

que um corpo lhe atravesse

que um corpo lhe atravesse

quinta-feira, setembro 27

 a cidade que vejo se revela
e resvala
como os olhos de um desconhecido.

 

era a cidade:
(apontava o seu braço reto e magro)
das escadas curvas
libertos os gatos sobre seus impérios degraus
infinitos degraus onde todo o corpo se consome

hoje perco a sua forma (cidade, cidade)
mas as casas nada poderia detê-las
tão iluminadas gralhas de memória e fantasmas
onde o mesmo cheiro é
sempre o cheiro da casa
dos três quartos vazios
 e uma árvore empoeirada.

pois que a cidade é outra.
não há minha cidade:
corpo difundido ao vácuo antes
das casas entre a fumaça
e a sua cabeça
cáustica, evadir-me na fumaça
asfixiar a árvore
e toda a nuvem de poeira que deflagram os seus galhos

(em uma cidade alheia
muitos anéis afogam-se nas banheiras)

 
hoje a cidade é
o vinho das 7 p.m.
- não há chá com torradas
- não há curva dos seus ombros

 
hoje a cidade é
toda cisão e seus repentes:
toda a fome de seus mendigos.

terça-feira, setembro 25

Ecos de Agosto


 

a noite derrete
(um corpo emergindo
               dos degraus)

 

pernas plásticas cingindo
o breu, elas transcorrem
o salão num vulto morno
de rumor e fibras
 

- por favor, mamãe, nenhum desastre.


os tigres de agosto, o repouso nu
de seus entornos revolve fantasmas.
nunca perdoam, estampam
em lanhos a cicatriz da fome                                   


- por favor, mamãe, nenhum desastre.
 

a ave bicuda de agosto
atesta a sua fome na casa ao lado.
aborta o sono da casa ao lado.
(desiste à tarde, grave mudez)
reside na noite – insidiosos
hertz de lisergia e caos
insidiosa noite,
                       habita o caos
de seus ecos imperativos:
                        desiste
                                   desiste

                        e desistir       
               mamãe,
lhe custa a vida.

sábado, setembro 1

Poema oblíquo

É para catar piolhos

 os teus cabelos, anacrônicos
que levianos lambem o vento
soltos       
                   
   perto
presos
                no ar

 

Há. Para trás há sombra
                   
habitantes invisíveis
permeiam, traçam o plano
(tesoura  nasce
tesoura)

longínquo.
então ele cabe, exato, em seu corpo
Ana
tão genérica,
tão fugaz.

Poderia traçar, perfeita, o plano.
 

compor raízes pálidas
entre cartéis do caos
o resgate, a loucura dos teus olhos
como piscam, pálidas pálpebras
rasgando, um sorriso de bic
em sua boca, nasce
a tesoura
que risca a testa em sua cor
mais ávida – vermelha
vermelha, vermelha.

domingo, agosto 26


Ela tem a dinâmica do furacões
                                  quando se estende pela noite
             e recrudesce.
 
a casa tomada
pelo vazio da sua voz em labirintos:

a louça está suja
              a cama
              o chão 

crostas arraigadas nos vasos
                            nas pedras
                      em suas coisas
 
                                    gordura
                                 pele
                          pelos:

os animais sentindo fome.
 
a fome dos seus animais
a fome dos seus animais
é terrivelmente visível
enquanto mordem a própria a carne
                                             e fedem
                                            e morrem.

                                                              
Ela, que chega
e joga! – tal qual é
a vida –
tudo isso
no lixo.

quarta-feira, agosto 15

espanto

descobrir o mistério em retornar
é desvendar a porta, seus movimentos restritos

penetrar o horror da memória
domar perdas
ela, o fardo a mover-se rente
(entre, encorpado, átrio...)


Há uma velha receita, despreze.


doenças tropicais, a fruta bem verde fisgando
o paladar – por que
existiriam?


(Abrir as pernas, cabendo
ao que existe dentro
em tantas curvas
                                           Fechar as penas,
                                        dissipar
                                      um gosto jamais capturado)



não existem mais.
recolhem-se em corpos invisíveis
muitos pisando sobre cabeças.

folha verde rasgada, árvore morta
desenhos em palimpsesto
 - por que existiriam?



e o segredo, descoberto, vagando
entre cartas engarrafadas
  - canta o tempo.



Há um mapa sob o travesseiro,

despreze.

terça-feira, julho 10

lembra, mesmo aqui, há tempo
o riscar vôo do Pássaro Impermeável.





Mas hoje, onde memória
     é uma estreita
poltrona azul-caneta
(cheira a muitos
               corpos)
o pássaro é o faquir
assentado permeável
sobre pregos.
                  

segunda-feira, julho 2

fissura cité

A janela é vidro e ferro.
Talhador

Através, rui-se a cidade
velha
Uma criança insone
apenas corre
            corre
            corre
a talhar o ferro

mastigo.
Sangro
Através
            correndo
            correndo




A janela


             perto demais.












quarta-feira, junho 20

Quando o silêncio soa
absurdo
uma agonia me distende a garganta,
Meu Deus,
quanto grito detêm-se
pedras em meu peito de lata.
quantos ruídos breves
agudos ruídos trincados
à glote.

vejo:    um tronco torto minhas pernas
            podem sentir a dor profunda
            a encobrir-se esta casa tão só
            poeira e bolor
Presenças restritas.

Um cavalo desanda o trote
porque sente fome ou dor
 no couro
- o que lhe falta é coragem - ouço
pela calçada

o esgoto é quente
e fede.
o bueiro lembra-me morte por água.

Eu choro essa lembrança.
desembaraço-a fraca em lembrar
Para então, ao fim da noite,
deitá-la comigo.

De ré movimenta-se o cavalo
meu desejo avesso é
o combustível E
se ele sentisse o sabor da minha garganta
                   nessa hora
                   a essa hora
engrenaria o assombro da velocidade
limando qualquer
entrave.
                  
                  

domingo, maio 27

Agnés retorna,
          e seus travellings
correm
        a minha memória

jorra,
a sua maresia
ela se ajunta na minha,
                       meus olhos
a vagar
     que são tantas as praias.


dissolvo-me
        escorro
implacável
            mar ressacado
vagarosa
            - aquela ilha deserta.

elas são  muitas, as praias.


dá-se um passo, e as pegadas
                sempre:
     um lastro de areia, nela
 chinelos perdidos, óculos
     sacolas plásticas, baralhos
guarda-sóis fechados
       guarda-sóis abertos
baldes vazios, cheios,
      as cartas, as conchas... (assemelham-se eles aos objetos
heteróclitos e tristes das salas de espera?
prefiro não pensar) e lá está
            o mar.

arde a sede.
          as praias são muitas
transborda...

Agnés então mais impregnada:
             fundo-me em devires nesse mar de memórias.
nado
      e sou a água.

na imaleabilidade dessa existência,
          a submersão.

domingo, maio 13

o morto

Ontem um inseto ao lado da minha mão. era cascudo, feio, lento. Matei. havia uma chícara de café à outra mão. Esmaguei. tléc. levantou-se
                                                     a chícara. o inseto morto
lado direito da minha mão.



Era cascudo,                     imóvel,                  seco...
morto. E fui eu.

terça-feira, maio 1

na era do amor virtual

- Rapidamente, ao tempo, esfria

a minha comida o gesto a luz entre frestas
          a minha boa noite               a vida.

E, se chega à boca,
amarga.

domingo, abril 8

Domingo de páscoa

No dia de hoje
com a força de um falcão que se arremessa
 à sua presa
 Eu me arremesso, apegando-me
a Deus
   e
ao tombar no colo de um desconhecido
estranho o seu cheiro, as suas coisas
desconhecidas
tangenciando o meu corpo enquanto proponho
com os olhos-espelho da Anarquia Divina
que desça deste pedestal ao qual me escoro
e pese a carne sagrada sobre a minha
(profana)
engendrada em pecado, coitada
esta que clama
de fome, sede
e fé alguma.

sábado, fevereiro 11

escuta, Carlos, eu nunca esperei
mas saber num dia
da sua chegada
me arrancou um soluço daqueles
que eu quase nem pude...

mas ah, como o tempo passa!, e Carlos
você chega.